Etimologia

ADESUWA AGBONILE

Eniola conseguira a Grande Promoção. Reunião do conselho de duas horas, pastas e mais pastas com novas informações, papéis para assinar. Depois disso, todo o pessoal do andar dele celebrou com champanhe no escritório. Nancy do RH ficou um pouco bêbada e cambaleou em direção a Eniola, disse algo incoerente; as únicas palavras que Eniola conseguiu decifrar foram “ação afirmativa”, e ele pensou que até mesmo isso poderia ter sido apenas uma ilusão, uma projeção de problemas que não existiam.

No dia seguinte, seu irmão mais velho, Luke, ligou para ele no trabalho.

“Ei, escute”, disse ele, assim que Eniola atendeu o telefone. “Acho que vou precisar da sua ajuda,”

“Achei que você estava ligando para dar os parabéns”, disse Eniola, levantando-se para fechar a porta do escritório.

“Tenho trabalhado muito duro. E eu não acho que tenho o suficiente. Para cobrir tudo.”

“Não chame de trabalho as coisas que você e seus amigos estão fazendo se não estiver sendo pago”, disse Eniola.

Por um segundo, ele pensou que Luke havia desligado. Então— “Você vai me dar dinheiro ou não?”

“Quanto?”

“Escute,” Luke disse. A palavra era uma vocalização da pressa e do desespero que Luke vinha praticando há décadas. “Estamos realizando um trabalho importante. Só porque estou com pouco dinheiro – faremos um grande protesto no próximo sábado. Você deveria vir.”

Luke sempre tinha os elementos dos protestos manchando as palmas de suas mãos; Eniola evitava ver Luke pessoalmente para que as mãos de Luke não estivessem sujas quando este voltasse para casa. Ele tinha acabado de comprar um novo apartamento de dois andares. Ele podia ver a água da janela de seu quarto.

“Quanto?” ele repetiu ao telefone.

“Um mil?”

“Jesus”, disse Eniola. “E você nem disse parabéns.”

“Pelo quê?”

“Eu fui promovido. Eu sou um -” Eniola teve que fazer uma pausa, girando em sua cadeira para olhar para a nova placa com o nome em sua mesa, “- um consultor de gestão sênior agora.” Ele escolheu interpretar o suspiro que ouviu ao telefone como ciúme. Eniola achava que merecia a promoção. Seu nome significava literalmente “menino rico” em iorubá. Sua mãe americana o dera para que tivesse sorte; parecia que a sorte estava dando frutos.

“Vou levar um cheque para você”, disse Eniola.

“Obrigado,” Luke disse.

“Black Power, acertei?”

Luke desligou.

O escritório de painéis de vidro de Eniola capturava o reflexo trêmulo da Space Needle, o marco da cidade de Seattle, pela manhã, quando o sol estava posicionado na posição certa. No almoço, gostava de passear pelos bairros mais movimentados da cidade, pegar um cachorro-quente na barraca em que nunca havia passado, sentar-se a uma mesinha perto de um cruzamento movimentado, observar as pessoas que passavam por ele. Se ele se aproximasse, poderia ouvir partes de suas conversas. Ele só fazia isso quando estava de terno, para trabalhar. Caso contrário, as pessoas ficavam com medo; se afastavam em um minueto educado, quase imperceptível. O terno deixava as pessoas menos assustadas.

Eniola adorava ouvir o que eles diziam. Tipo: mamãe me falou que gostou da casa nova, mas eu a visitei outro dia, acho que os vizinhos fumam cigarro demais, estou preocupada com o pulmão dela. Ou: qual é o nome desse lugar, na Rua 5? Aquele com o – não. Não, é — começa com um L. Não? Droga. Vai me irritar.

A maioria dos colegas de trabalho de Eniola fazia suas refeições dentro do escritório – a comida era mais cara, o que a tornava melhor, e suas roupas não cheirariam à rua depois. Mas Eniola odiava quinoa. Ele investiu em um perfume forte.

Hoje, Eniola olhou para o outro lado da rua e viu Luke. Deu um pulo, tateou os bolsos em busca de um talão de cheques, olhou de novo – não era Luke. Era um sem-teto, pelo menos parecia um sem-teto, usava uma calça de moletom manchada e um casaco puído e estava sentado ao lado de um saco de dormir surrado. Ele se parecia com Luke, no entanto. Ombros largos, pele marrom-avermelhada, postura curvada. Enquanto Eniola olhava, o sem-teto girou a cabeça. Começou a olhar de volta.

Eniola se encolheu, olhou para seu cachorro-quente, olhou para ele novamente. O homem ainda estava olhando. E lentamente, o homem se levantou. Atravessou a rua depois que o semáforo acendeu. Continuou andando. Ele até caminhava como Luke – com ar determinado, pisando com força nas solas dos pés. Ele caminhou, galopando, seguro, até que estava na frente de Eniola, bem ali.

Antes que qualquer um deles pudesse dizer qualquer coisa, Eniola pegou sua carteira e entregou ao homem uma nota de vinte. O movimento parecia familiar, fraternal; Eniola interpretando a mesma cena cansada que vinha interpretando nos últimos 15 anos, seu roteiro se desgastando.

Ao entregar o dinheiro, ele se sentiu bem. Eniola queria que o homem tivesse algo para comer. Algum lugar para morar.

“Faça o seu melhor”, disse Eniola. Ele considerou adicionar algo mais, acabou decidindo não-fazê-lo, acrescentou um fraco “cara” no final.

O homem pegou o dinheiro, considerou-o brevemente e, com um movimento rápido e selvagem, rasgou-o ao meio.

A garganta de Eniola emitiu um som curto e engasgado. Seu primeiro instinto foi estender a mão e pegar a nota, tentar juntá-la, trazê-la de volta à vida.

“Sim”, disse o sem-teto. Ele deixou a palavra pairar no ar um pouco, depois a repetiu. “Sim. Você acha que é bacana. Você trabalha ali, certo? ” Ele apontou para o prédio de escritórios de Eniola, a três quarteirões de distância, elevando-se acima de todos os outros edifícios. Os vidros brilhavam – limpos, sem sangue – à luz do sol suave da primavera.

Eniola não disse nada.

“Sim. Sim, você pensa que é alguma coisa.” A voz do homem era áspera, arrastada. Ele apontou o dedo indicador firmemente no ar na frente do rosto de Eniola, indicando onde deveria estar a pontuação em suas palavras. “Sim. SIM. Você acha que se você se vestir como a Barbie e o Ken, você é diferente.”

Eniola pensou em ir embora. Ele queria ir embora.

“Mas ei-” As pessoas ao redor deles começaram a olhar para eles, afastando-se devagar. Uma mãe empurrou o carrinho em uma grande parábola ao redor deles. “—Você não é diferente. Você não é diferente.”

Eniola abriu a boca para dizer algo, algo grande, com peso suficiente para fazer aquele homem ir embora; algo como: “vá se foder”, ou “estou apenas fazendo o que eu posso”, ou “minha mãe, que só conheceu esse país, me chamava Eniola, que é iorubá, que é uma língua de que ela nunca tinha ouvido falar, e ela fez porque alguém lhe contou que significava ‘garoto rico’, e quem sabe, isso poderia ser uma mentira, mas ela me disse que seria um amuleto de boa sorte e é e você não pode me culpar por isso.”

Antes que pudesse dizer qualquer coisa, o homem à sua frente convocou tudo o que estava escondido nas cavidades escuras de seu ser, franziu o rosto, abriu a boca e cuspiu.

O branco-marrom-amarelo escorria pela lapela do terno de Eniola. Era um Armani. Dois mil. Ele o tinha feito sob medida.

Eniola foi embora. No banheiro do saguão do prédio onde ficava seu escritório, ele conseguiu tirar a maior parte do sem-teto de seu terno; tanto a saliva do homem quanto seu sentimento em geral. Mas, pelo resto do dia, a lapela de Eniola ficou com uma leve mancha. Não saiu na lavagem a seco.

Naquele mesmo dia, ele saiu do escritório mais cedo, para dirigir até o apartamento de Luke. Ele pensou em pegar o ônibus, mas desistiu – ele queria estar em casa antes de escurecer.

“Você deveria ter vindo de ônibus,” Luke disse, olhando para o BMW preto de Eniola pela janela. “Alguém vai roubar isso aí.”

Em grego, Lucas significava luz. Lucas também foi um personagem bíblico que, após sua morte, se tornou o santo padroeiro dos artistas e médicos. Eniola achava que a mãe havia dado seu nome a Luke porque esperava que ele se tornasse médico. Luke não se tornou médico, embora tenha se tornado uma espécie de artista. Ele pintava correntes invisíveis em seu corpo e fazia um espetáculo ao quebrá-las.

“Está trancado”, disse Eniola. “Não há nada dentro, de qualquer maneira.”

Eniola parou logo após a porta de entrada da casa de Luke, não se sentou. Tudo no apartamento de Luke era velho e quebrado; Eniola ahvia ajudado a arrastar o sofá da rua para a parede oposta do apartamento. Ele sempre teve o cuidado de não se sentar, nem de tocar em nada. Era em parte para não ser sujado pelo apartamento, mas também por não querer deixar vestígios de si mesmo depois de sair.

“Você está com o dinheiro? Ou não?”

Eniola entregou um cheque a Luke. Luke pegou sem dizer obrigado. Isso sempre irritava Eniola.

“Escute,” Luke disse. “Você vai ao protesto no próximo sábado?”

“Sobre o que é?” Eniola havia parado de assistir ao noticiário.

Luke semicerrou os olhos, balançou a cabeça e disse: “Cara. É sobre Mark. Mark Freed.”

“Quem é esse?”

“Ele era um negro sem-teto. Abatido. Sete quarteirões daqui.” Luke balançou a cabeça. “Apenas – tac tac tac.” Ele usou os dedos para imitar uma arma. Seu polegar sacudiu para baixo com cada sílaba.

“Quem o matou?”

Luke juntou as palmas das mãos e as levou ao rosto. “Eni – quem você acha que matou?”

Eniola sabia. Ele fizera a pergunta para ser educado com pessoas que não estavam naquela sala, e nem mesmo na vizinhança de Luke.

O Lucas na Bíblia morreu de velhice, acreditando que iria para o céu para todo o sempre. Este era outro desejo que sua mãe tinha para Luke. Eniola pensou que talvez seus desejos tivessem se escondido de seu filho primogênito e se agrupado em seu ventre para habitar o segundo filho.

“Hoje eu dei uma nota de vinte a um sem-teto”, disse Eniola. “Ele a rasgou. Bem na minha frente.”

“Parece que seu dinheiro não resolve tudo,” Luke olhou para o BMW novamente.

“Devo pegar de volta?” Disse Eniola.

Luke sorriu sem humor. Era mais fácil fingir que o que foi dito era uma piada. Eniola sorriu de volta. Os fios invisíveis de DNA que os uniam ficaram mais rígidos. Se puxados uma fração mais, eles quebrariam.

“Por que eles o mataram?” Perguntou Eniola.

“Quem?”

“O – Mark. Mark Freed.”

“Oh. Eles pensaram que ele era um traficante de drogas. Ou não. Esse foi o outro,” Luke olhou ao redor de seu apartamento por um segundo, confuso. “Mark Freed – eles pensaram que ele estava chapado. Eles pensaram que ele representava um perigo porque estava doidão.”

“Ele estava?”

“Doidão? Ou perigoso? “

Eniola encolheu os ombros. “Um dos dois? Ambos?”

Luke bateu palmas de novo e passou-as no rosto. “Isso importa?”

Eniola pensou, talvez. Ele disse: “Você deveria arrumar um emprego, Luke”.

“Eu tenho um,” Luke disse. “Venha para o protesto. Veja as notícias. Coisas estão acontecendo. Elas estão acontecendo bem aqui.”

Ali estava a luz que era uma promessa no seu nome – a luz brilhava nos olhos de Luke, nos seus punhos, sua garganta, no pomo de Adão que saltava. Ele era um médico, pelo menos um pouco. Diagnosticando as dores que assolavam as ruas em que os dois cresceram.

“Eu quis dizer – arrumar um emprego de verdade”, disse Eniola. Ele também vivia de acordo com seu nome.

No seu sexto encontro, Eniola soube que o nome do morador de rua era Martin. Eniola pesquisou o significado de seu nome – vinha do deus romano Marte. Deus da guerra. Eniola passou horas olhando pinturas de Marte – ele sempre era retratado em arcos vermelhos e amarelos de movimentos tensos, brandindo uma espada e um escudo, o rosto desafiante. Da tela do computador, sempre parecia que Marte estava atacando, na direção de Eniola.

Os almoços que Eniola compartilhava com Martin sempre começavam da mesma forma. Eniola comprava um cachorro-quente, sentava onde ele sempre se sentava, olhava para o outro lado da rua onde Martin estava sentado, ao lado de seu saco de dormir. Às vezes, ele ficava enfiado dentro do saco de dormir. Então Martin se levantava, passeava pela rua, olhando para Eniola, até que estivesse a 3 metros. Então começaria a falar.

Você não é diferente, ele às vezes dizia. Ele às vezes dizia a Eniola como ele era inútil, sem valor, como todos eles eram inúteis, sem valor. Ele às vezes fazia perguntas. Você acha que é alguma coisa? Você alguma vez dormiu no chão? Você já sequer pensou sobre as pessoas? Você já pensou em mim?

Os monólogos eram variados, mas a conclusão era consistente – um punhado de cuspe caindo em alguma parte da roupa de Eniola.

Eniola nunca replicava. Mas ele pensava em Martin. Quase o tempo todo. E quando ele pensava em Martin, ele pensava em Luke. Então ele pensava no protesto. Ele pensava em Mark. Mark Freed. E que “freed” significava liberto.

Eniola empurrava dinheiro para as mãos de Martin, ocasionalmente. E Martin mal olhava para as notas verdes e douradas antes de despedaçá-las.

No sábado do protesto, Eniola acordou e sentiu sua respiração subindo pela garganta. Ele pensou que poderia estar doente. Passou o dia na cama, dormindo e acordando. De vez em quando, acordava tossindo, corria para o banheiro, vomitava na banheira, que ficava mais perto do que a privada. Ele pensou que deveria ligar para alguém, para garantir. Ninguém veio à mente. Ele voltou a dormir.

Seu telefone o acordou. Era Luke.

“Você está vindo?” Luke disse.

“Para o quê?” Disse Eniola.

“O protesto.”

“Eu… eu acho que estou doente.” Eniola havia vomitado quatro vezes.

“Tá,” disse Luke.

Eniola podia ouvir os olhos de Luke girando. “Vomitei quatro vezes”, disse ele.

“Beleza, cara.”

Eniola adormeceu novamente, foi acordado pelo som de tiros. Ele rolou para fora da cama, jogou o corpo no chão, ficou lá, esperando. Depois de um tempo, se levantou, foi até a janela do quarto, abriu as cortinas, procurou o buraco que a bala teria feito no vidro. A janela estava lisa, intacta. Eniola tinha uma visão clara da água. As palavras de Luke sacudiram em torno de seu cérebro – abatido. Tac tac tac.

Teria ele imaginado os tiros? Ele decidiu caminhar, ao ar livre. Antes que tivesse tempo de perceber, andou 11 quilômetros até seu escritório, seguiu ainda mais longe até seu ponto de encontro habitual com Martin, sentou-se e olhou para o outro lado da rua. Não havia ninguém lá. Ele esperou. A essa altura, o ar estava denso e frio – era o tipo de tarde de primavera em que parecia que a escuridão deveria ter chegado, mas ainda não estava lá.

O cara que vendia cachorros-quentes fechava sua barraca nos finais de semana. Eniola nunca tinha visto a barraca de cachorro-quente não aberta antes. As ruas se estreitaram à medida que o sol se punha, o vazio tornava Eniola paranóico. Ele nunca tinha percebido que um apocalipse acontecia todas as noites, bem debaixo de seu nariz. A rua parecia diferente, ele se sentia menos no controle, e por que as ruas estavam tão vazias, afinal, e onde estavam todos? E onde estava Martin? Com seu escudo e lança, disparando suas declarações de guerra?

Eniola se levantou, cambaleou pela rua, achou que precisava vomitar, abriu a boca, não saiu nada. Achou que estava doente, definitivamente. Ele chegou ao lugar onde Martin ficava. Não havia saco de dormir ali, nem Martin. Ele se sentou para esperar.

Dois adolescentes dobraram a esquina. Ao se aproximarem de Eniola, eles caminharam um pouco mais rápido; atravessaram a rua longe da faixa para que não tivessem que passar por ele.

Eniola pensou ter ouvido um deles falando algo sobre ele. Algo tipo: ele estava doidão? Não, apenas cansado, provavelmente. Sim claro. Eu gostaria de estar “cansado” desse jeito neste momento. Ambos riram.

De longe, Eniola ouviu uma sirene da polícia. Ele se perguntou se estava vindo em sua direção, ou talvez se afastando dele e em direção ao protesto de Luke. No gramado, as palavras de Luke estavam caídas ao seu lado.

Abatido. Como você acha que foi? Tac tac tac.

Havia muitos policiais por perto. O pensamento fez a cabeça de Eniola doer. Sentado na grama, ele se perguntou o que significava o nome Mark.

Uma marca, Eniola pensou, como se uma mancha tivesse ficado em alguma coisa. Marca, da maneira que um X marca um lugar. Tipo, um lugar para mirar. Marca, como um filho de ossos e pólvora, marca significando ter nascido com o rosto pintado em um cartaz após o fato. “Marca”, palavra que significava “como você acha que foi?” Marca, como em tac tac tac. Marca, significando “morto a tiros”.

Abatido fazia com a coisa toda soasse como uma guerra. Às vezes, Eniola pensava naquilo como uma guerra, com os uniformes, as armas, a poeira que parecia nunca se espalhar. Eniola não estava de uniforme hoje, não havia terno Armani com o botão na casa, ele estava de calça de moletom e casaco e estava bem escuro.

Onde estava Martin? Eniola começou a ver os contornos vagos da resposta. Sempre houve muitos policiais por aqui. Houve mesmo? Fizera questão de não notar, de não assistir ao noticiário, apenas de ir trabalhar, ir para seu apartamento, olhar a vista do mar.

Em sua mente, ele viu o rosto de Luke, então o rosto de Mark, em seguida o rosto de Martin. E então o seu próprio.

Luke, Martin, Eniola, Mark. Todos eles significavam a mesma coisa, todos tinham a mesma raiz, talvez.

Eniola deitou-se na grama, envolveu-se com os braços, criando seu próprio saco de dormir. Ele imaginou a sala de metal frio onde colocaram o corpo de Martin, a quantas fileiras de profundidade ele estaria, quantas fileiras de largura a sala tinha. Daqui a duas semanas, talvez, eles fariam um protesto sobre Martin. Luke perguntaria – como você acha que foi? E todos saberiam a resposta. Mas Eniola não iria ao protesto. E agora, ele estava deitado na escuridão leitosa, deixando sua pele entrar e sair de foco com o céu sombrio.

Eniola acordou com o rosto colado na grama; ainda estava escuro. Ele não sabia se era a mesma noite de sábado, ou se era a noite de domingo, ou talvez uma semana tivesse se passado, ou talvez ele estivesse morto.

Ele se levantou, decidiu ir para casa, viu-se em um ônibus indo para o apartamento de Luke. Eniola sentou-se perto do motorista do ônibus, inclinou-se, disse – que horas são?

O motorista estremeceu. Suas mãos se enrolaram com força ao redor do volante. “São onze e meia.”

“O que – de que dia?”

“Huh?”

“Que dia da semana é?”

“Sábado.”

As únicas outras pessoas no ônibus eram duas crianças em idade universitária. Elas pegaram suas coisas e foram para o fundo. Eniola entendeu. Ele teria feito a mesma coisa.

No apartamento de Luke, Eniola entrou com a chave reserva que sempre guardava na carteira. Luke estava esparramado no sofá, dormindo. O som da porta abrindo o acordou.

“O que—” ele começou.

“Sou eu”, disse Eniola.

Luke teve que acender as luzes, esfregar os olhos duas vezes para ter certeza.

“Cristo,” Luke disse. “O que você está fazendo?”

Eniola sentou-se no chão de Luke. O sábado parecia impossivelmente longo. Ele estava cansado e cheirava à grama, sujeira e vômito.

“O que você está fazendo?” Luke repetiu, quase em pânico. “Eu não – eu não tenho seu dinheiro ainda.”

A cabeça de Eniola latejava. “Eu ouvi tiros.” Ele disse, lembrando-se da janela de seu quarto. “Eu pensei – eu queria verificar. Achei que você pudesse estar morto.”

Qual deles havia morrido? Martin, Luke, Mark; eles vagaram pela cabeça de Eniola, seu peso desabando sobre ele até que ele viu seus rostos comprimidos um em cima do outro. Ele se deitou no chão de Luke, pensou, novamente, que iria vomitar.

“Você está doidão?” Do chão, Eniola podia ver o rosto de Luke pairando sobre o dele. Sobrancelhas franzidas, lábios franzidos – ele parecia Martin. Exceto, Eniola pensou, vivo. Tão, tão vivo.

“Não”, disse Eniola. “Eu só – eu ouvi tiros. E, o protesto e as sirenes…”

“Não houve tiros,” Luke disse, exasperado. “Ninguém levou um tiro. Nenhuma prisão, nada. Foi uma coisa pacífica.”

Eniola fechou os olhos. “Bem,” ele disse.

“O que está acontecendo, Eni?”

Eniola queria explicar – os tiros, as sirenes, depois Martin, sumido, para sempre, e então, todos se pareciam tanto, e todos os rostos podiam ser combinados – um dois três quatro – um com o outro. E sendo a morte transitiva, Eniola tinha que se certificar de que não havia sido transferida para Luke, ele com sua luz e sua arte e suas correntes. Mas Eniola não disse nada disso. Em vez disso, ele disse: “Você não precisa me pagar”.

Então começou a chorar.

E Luke assistiu; dois olhos testemunhando algum tipo de demolição interior, um protesto esquisito e solitário. Mas para Luke, para Eniola, para o pequeno apartamento e para o sofá sujo retirado da rua, era protesto o suficiente.

Na segunda-feira, Eniola se sentiu quase perfeito. Quando ele entrou em seu escritório, a plaquinha com o nome em sua mesa parecia mais acomodada, familiar. Naquela manhã, ele foi para a sala de descanso para tomar um café e observou seus colegas de trabalho misturarem o açúcar em suas xícaras o mais lentamente possível.

Alguém mencionou o protesto de sábado.

“Será que não há mais espaço”, disse Nancy, sabiamente, “para o debate?”

O punhado de pessoas na sala de descanso murmurou sua concordância. Enquanto se moviam, podia-se ouvir o farfalhar de seus ternos.

“É tão triste”, disse Frank, “que eles pensem que tumultos são a única solução.”

“Imagine toda a produção econômica se eles simplesmente trabalhassem”, disse Nancy. Todos concordaram vigorosamente. Ah! Isso era a indústria. Problemas resolvidos nos confins seguros de um arranha-céu. Você podia sentir as biografias sendo escritas.

Em um acesso de engenhosidade, Nancy voltou-se para Eniola. “Não é mesmo, Eniola?”

O mundo se expandiu dramaticamente e entrou em colapso de uma vez só. Eniola queria dizer “meu irmão organizou aquele protesto”. Ele queria dizer “um sem-teto chamado Martin está cuspindo em mim há quase uma semana”. Literalmente cuspindo. Eu acho que ele está morto. Acho que ele foi assassinado. Por pessoas como você, eu acho. Eniola queria dizer “eu só conheço vocês”. Comprei meu apartamento há um ano e não recebi nenhum convidado.

Eniola sorriu, com os lábios fechados, para que Nancy não visse seus dentes. “Você está absolutamente certa”, disse ele.

Ele passou seu tempo na fila do cachorro-quente naquele dia imaginando um discurso para o enterro de Martin. Ele se sentou em seu lugar de costume. Ele percebeu, do outro lado da rua, um saco de dormir. Um homem furioso, arrastando os pés pela rua, como se houvesse um forte vento contrário soprando contra ele.

“Ai meu Deus”, disse Eniola em voz alta. Foi menos pelo choque, mais como oração.

Martin aproximou-se de Eniola. Abriu a boca para começar a falar.

“Escute”, disse Eniola antes que o outro falasse. Martin fez silêncio. “Você quer meu terno?”

“O que?” Martin disse.

“Você quer – você quer para você? Eu te dou.”

Foi a primeira vez que Eniola viu Martin fazer silêncio. “Podemos trocar”, disse Eniola. “Vou vestir suas roupas, você veste as minhas.”

Eniola levou Martin de volta ao seu escritório, observou-o empurrar a porta giratória e encolher-se no espaço aberto do saguão. Antes que alguém pudesse notar, ele levou Martin para o banheiro do lobby. Eles trocaram de roupa nas cabines de mármore do banheiro.

O terno de Eniola era simultaneamente grande e pequeno demais para Martin, comprido e caído nos braços, apertado na cintura. Mas as roupas de Martin caíam bem em Eniola. Calça de moletom manchada, um casaco que cheirava a urina e fumaça de cigarro.

“O que você vai fazer?” Martin disse. Foi o mais suave que Eniola o ouvira falar até então.

Eniola queria voltar para o lado de fora e se deitar na grama ao lado do saco de dormir de Martin, observar as pessoas na rua enquanto elas iam e vinham. Ele queria se inclinar para eles, chegar bem perto. Ouvir suas conversas e pedir-lhes que o ouvissem também.

“Eu vou trabalhar, eu acho.” Disse Eniola. “Acabei de ser promovido.”

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