F. SCOTT FITZGERALD
Os olhos vítreos do fatigado leitor, ao pousar por um segundo no título acima, julgarão que o mesmo seja meramente metafórico. As histórias acerca de taças e lábios, da moeda falsa ou da vassoura nova, raramente têm algo a ver com taças ou lábios, ou com moedas ou vassouras. Esta história constitui exceção.
Partindo do pescoço, seguiremos em direção da cauda. Desejo apresentar-lhe o Sr. Perry Parkhurst, vinte e oito anos, advogado, natural de Toledo, Ohio. Perry tem belos dentes, um diploma de Harvard e reparte os cabelos no meio. O leitor já o conheceu antes — em Cleveland, Portland, St. Paul, Indianápolis, Kansas City e assim por diante. Os Baker Brothers, de Nova York, fazem uma pausa em sua viagem semianual pelo Oeste a fim de vesti-lo; a Montmorency & co. despacha diligentemente um jovem, cada três meses, a fim de verificar se ele tem em seus sapatos o número correto de furos para passar os cadarços. Possui agora um carro esporte nacional, terá um carro esporte francês se viver o suficiente e, sem dúvida, um tanque de guerra chinês, se isso ficar na moda. Parece o anúncio do jovem a esfregar linimento no peito colorido pelo pôr do sol, e que vai, de dois em dois anos, para o Leste, a fim de participar da reunião anual de seus companheiros de classe.
Quero que o leitor conheça o seu Amor. Chama-se Betty Medill e faria belo papel no cinema. O pai lhe dá trezentos dólares mensais para que se vista; tem olhos e cabelos castanhos claros e um leque de penas de cinco cores. Apresentarei também o pai, Cyrius Medill. Embora seja, sob todos os aspectos, um homem de carne e osso, é estranho dizer-se que o conhecem em geral, em Toledo, como o Homem do Alumínio. Mas quando se senta, junto à janela de seu clube, em companhia de dois ou três Homens do Ferro, e como o homem do Pinho Branco, e com o Homem do Bronze, todos eles se parecem muito com o leitor e comigo, só que se parecem mais, se é que o leitor sabe o que quero dizer.
Ora, durante as festas de Natal de 1923, realizaram-se, em Toledo, contando-se apenas as reuniões de que participaram pessoas importantes, quarenta e um jantares de cerimônia, dezesseis bailes, seis almoços, masculinos e femininos, doze chás, quatro banquetes, dois casamentos e treze jogos de bridge. Foi o efeito cumulativo de tudo isso que levou Perry Parkhurst, no dia 29 de dezembro, a tomar uma decisão,
Essa jovem Medill queria e não queria casar com ele. Estava se divertindo muito e odiava dar um passo assim tão definitivo. Entrementes, seu noivado secreto já durava tanto tempo que, dir-se-ia, desmoronaria, qualquer dia, devido ao seu próprio peso. Um homenzinho chamado Warburton, que sabia de tudo, persuadiu Perry de que devia impor-se, arranjar uma licença de casamento, ir à casa dos Medill e dizer a Betty que tinha de casar com ele imediatamente ou acabar tudo para sempre. Assim, apresentou-se ele levando seu coração, sua licença de casamento e seu ultimatum e, cinco minutos depois, estavam envolvidos em violenta briga, numa irrupção de luta aberta e esporádica, tal como as que ocorrem no fim de todas as guerras e noivados demorados. Aquilo produziu uma dessas escorregadelas lamentáveis em que duas criaturas que se amam se acusam asperamente, olham-se com frieza e pensam que tudo não passou de um equívoco. Depois, em geral, beijam-se saudavelmente e asseguram, uma à outra, que a culpa foi somente sua. Diga que a culpa foi toda minha! Diga que foi! Quero ouvir você dizer!
Mas, enquanto a reconciliação tremia no ar, enquanto cada qual estava, de certa maneira, mantendo-a à distância, a fim de poder gozá-la de modo mais voluptuoso e sentimental quando chegasse, foram permanentemente interrompidos por uma chamada telefônica de vinte minutos, feita por uma tia loquaz de Betty. Ao fim de dezoito minutos, Perry Parkhurst, impelido por orgulho, suspeita e dignidade ofendida, vestiu o seu comprido sobretudo de peles, apanhou o seu chapéu cinza claro e dirigiu-se à porta.
“Está tudo acabado”, murmurou, abatido, ao tentar, em seu carro, engrenar a primeira. “Está tudo acabado… mesmo que eu precise afogá-lo durante uma hora, maldito!” Esta última imprecação foi dirigida ao automóvel, que, tendo ficado parado mais de uma hora, estava com o motor muito frio.
Rumou, depois, para o centro da cidade… isto é, meteu-se por um sulco de neve que o conduziu à cidade. Conservou-se muito encolhido no assento, demasiado acabrunhado para se importar para onde ia.
Diante do Clarendon Hotel, foi chamado por um homem que atendia pelo nome de Baily, tinha dentes grandes, morava no hotel e jamais estivera apaixonado.
— Perry — disse o homem mau em voz baixa, quando o carro esporte parou ao seu lado, junto à calçada. — Tenho seis garrafas do mais maravilhoso champanha que você jamais experimentou. Um terço dele é seu, Perry, se você subir comigo e ajudar Martin Macy e eu a bebê-lo.
— Baily — respondeu Perry, tenso — beberei seu champanhe. Beberei até a última gota. Pouco me importa que me mate.
— Cale-se, “seu” bêbado! — exclamou, suavemente, o homem mau. — eles não põem álcool de madeira em champanha. Trata-se de algo que prova que o mundo tem mais de seis mil anos. É tão velho que a rolha está petrificada. Para arrancá-la, é preciso um perfurador de pedras,
— Leve-me para cima — disse Perry, soturno. — Se essa rolha vir o meu coração, saltará logo por puro despeito.
O quarto, em cima, era cheio desses inocentes quadros de hotel, mostrando menininhas a comer maçãs, sentadas em balanços e a falar com cães. As outras decorações eram gravatas dependuradas e um homem rosado a ler um jornal cor-de-rosa dedicado a espartilhos cor-de-rosa.
— Quando vocês tiverem de sair por estradas e atalhos… — disse, em tom de censura, a Baily e Perry, o homem rosado.
— Alô, Martin Macy — interrompeu-o Perry. — Onde está esse champanhe da idade da pedra?
— Para que toda essa pressa? Isso não é uma operação, veja se compreende. g uma festa.
Perry sentou-se soturnamente e lançou um olhar de desaprovação a todas as gravatas.
Baily abriu com toda a calma um guarda-roupa, e tirou de seu interior seis belas garrafas de champanha.
— Dispa esse maldito casaco! — disse Martin Macy, dirigindo-se a Perry. — Ou talvez você prefira que abramos todas as janelas?
— Deem-me champanha — respondeu Perry.
— Você vai, esta noite, ao baile a fantasia dos Townsends?
— Não!
— Foi convidado?
— Hum-hum.
— Por que não vai, então?
— Oh, estou cansado de festas! — exclamou Perry. — Estou cansado disso. Tenho ido a tantas festas, que já estou cansado.
— Mas talvez você vá à festa de Howard Tates, hem?
— Não. É como lhe digo: estou cansado de festas.
— Bem — disse Macy, consoladoramente — a festa dos Tates é, de qualquer modo, apenas para colegiais.
— Como já lhe disse…
— Julguei, porém, que você fosse a alguma delas. Vejo pelos jornais que você ainda não perdeu uma festa neste Natal.
— Hum — grunhiu, taciturno, Perry.
Jamais iria à festa alguma. Frases clássicas passavam-lhe pela mente… Aquela parte de sua vida estava encerrada, encerrada. Agora, quando um homem diz “encerrada, encerrada” dessa maneira, a gente pode ter a certeza de que alguma mulher o traiu, por assim dizer. Perry estava também pensando naquela outra ideia clássica, isto é, quão covarde é o suicídio. Ocorreu-lhe um pensamento nobre… cálido e inspirador. Pense em quantos bons homens não perderíamos, se o suicídio não fosse uma coisa assim tão covarde!
Sessenta minutos depois, já eram seis horas, e Perry já havia perdido qualquer semelhança com o jovem do anúncio do linimento. Parecia mais um esboço tosco de uma charge picaresca. Cantavam, agora, uma canção improvisada por Baily:
Um tal Perry, frequentador de salas de visitas,
Famoso em toda a cidade pela maneira como toma chá;
Brinca com ela, gira-a entre os dedos.
E não faz barulho com ela,
Equilibrada sobre um guardanapo, no joelho experimentado.
— A desgraça — disse Perry, fazendo uma franja na testa com o pente de Baily e procurando enrolar no pescoço uma gravata cor-de-laranja, a fim de conseguir um efeito de Júlio César — é que vocês, como cantores, não valem um caracol. Logo que saio do ar e começo a cantar como tenor, vocês também começam a cantar como tenor.
— Sou um cantor nato — disse, com ar grave, Macy. — A voz precisa um pouco de treino, só isso. Possuo uma voz natural, costumava dizer minha tia. Sou, por natureza um bom cantor.
— Cantores, cantores, todos bons cantores — observou Baily, que estava ao telefone. — Não; não no cabaré; quero uma ceia. Que algum maldito empregado nos traga a comida… comida! Quero…
— Júlio César — anunciou Perry, dando uma volta diante do espelho. — Homem de vontade de aço e determinação férrea.
— Cale-se! — berrou Baily. — Aqui quem fala é o Sr. Baily. Envie-nos um grande jantar. Isso fica a seu critério. Imediatamente.
Pôs o fone no gancho, com certa dificuldade; depois, os lábios cerrados e uma expressão de solene intensidade no olhar, dirigiu-se à gaveta inferior da cômoda e abriu-a.
— Vejam! — ordenou, segurando uma peça de pano cor-de-rosa, listrada — Calças! — exclamou, o ar grave. — Vejam!
Havia uma blusa cor-de-rosa, uma gravata vermelha e um colarinho Buster Brown.
— Vejam! — repetiu. — Fantasia para o baile dos Townsends. Sou o garotinho que carrega água para os elefantes.
Perry, embora não o desejasse demonstrar, estava impressionado.
— Vou fantasiado de Júlio César — anunciou, após um momento de reflexão.
— Julguei que você não fosse ao baile! — disse Macy.
— Eu? Claro que vou! Jamais perco uma festa. É bom para os nervos… como aipo.
— César! — zombou Baily. — Não pode ser César! César não fazia parte de nenhum circo. O César de Shakespeare. Vá como palhaço.
Perry abanou a cabeça.
— Não; César.
— César?
— Claro. Carruagem.
A luz desceu sobre Baily:
— Tem razão. Boa ideia.
Perry lançou um olhar inquisitivo pelo quarto.
— Você me empresta um roupão de banho e esta gravata — disse, afinal.
Baily refletiu um segundo.
— Não serve.
— Claro que serve! Isso é tudo de que necessito. Eles não podem achar ruim se eu aparecer como César, já que César era um selvagem.
— Não — respondeu Baily, abanando lentamente a cabeça. — Arranje uma fantasia de aluguel. Na loja de Nolak.
— Está fechada.
— Verifique.
Após cinco minutos enigmáticos, grudado ao telefone, uma voz sumida, fatigada, conseguiu convencer Perry de que era o Sr. Nolak quem estava falando, e de que a loja ficaria aberta até às oito horas, devido ao baile dos Townsends. Assim, tranquilizado, Perry comeu grande quantidade de filet mignon e bebeu sua terceira e última garrafa de champanha. As oito e quinze o homem de cartola que fica diante do Clarendon deparou com ele procurando fazer funcionar o seu carro esporte.
— Congelado — explicou, sensatamente, Perry. — Gelado pelo frio. Pelo ar frio.
— Gelado, hem?
— Sim. O ar frio o gelou.
— Não consegue fazê-lo pegar?
— Não. Deixe que ele fique até o verão. Uma dessas quentes tardes de agosto fará, sem dúvida, com que ele se descongele.
— Vai deixá-lo aí?
— Claro. Deixe que fique aí. Será preciso um ladrão muito quente para roubá-lo. Arranje um táxi.
O homem de cartola chamou um táxi.
— Para onde, meu senhor?
— Para a loja Nolak… onde se alugam fantasias.
II
A Sra. Nolak era baixa e de aspecto pouco eficiente e, terminada a guerra mundial, pertencera, durante algum tempo, a esta ou aquela das novas nacionalidades. Devido às condições europeias, jamais, desde então, esteve inteiramente certa do que ela. A loja em que ela e o marido desempenhavam suas limitadas tarefas diárias era escura e espectral, povoada de armaduras, mandarins chineses e enormes pássaros de papier-mâché suspensos do teto. Num vago segundo, muitas fileiras de máscaras fitavam, ferozes, sem olhos, o visitante — e havia ainda redomas de vidro cheias de coroas e cetros, e joias, e enormes peitilhos em ponta, e pinturas, e escumilhas, e perucas de todas as cores.
Quando Perry entrou na loja, a Sra. Nolak estava dobrando as últimas complicações de um dia extenuante (assim supunha ela) numa gaveta repleta de meias de seda cor-de-rosa.
— Alguma coisa para o senhor? — indagou ela, pessimista.
— Desejo uma fantasia de Júlio Hur, o condutor de biga.
A Sra. Nolak lamentava muito, mas tudo o que havia sobre condutores de biga fora alugado havia muito. Era para o baile a fantasia dos Townsends?
Era.
— Sinto muito — disse ela —, mas não creio que haja sobrado coisa alguma que seja circense.
Aquilo era um obstáculo.
— Hum — resmungou Perry. Mas, súbito, ocorreu-lhe uma ideia. — Se a senhora tiver um pedaço de lona, eu poderia fazer uma tenda.
— Lamento, mas não temos nada assim. O senhor teria de ir a uma loja de ferragens. Temos alguns soldados confederados muito bonitos.
— Não. Nada de soldados.
— Tenho, também, um belíssimo rei.
Ele abanou a cabeça.
— Vários cavalheiros — prosseguiu ela, esperançosa — estão usando cartola e fraques, e irão como diretores de circo… Mas não temos mais cartolas. Posso arranjar-lhe um bigode postiço.
— Desejo alguma coisa instintiva.
— Alguma coisa… vamos ver. Bem, temos uma cabeça de leão, e um ganso, e um camelo…
— Camelo?
A ideia agarrou-se logo à imaginação de Perry, aferrou-se a ela com violência.
— Sim, mas são necessárias duas pessoas.
— Camelo. Eis aí a ideia. Deixe-me vê-lo.
O camelo foi retirado de seu lugar de descanso, numa prateleira de cima. À primeira vista, parecia consistir inteiramente de uma cabeça muito ossuda, cadavérica, bem como de uma corcova de bom tamanho, mas, ao ser estendido, via-se que possuía um corpo marrom escuro, de aspecto muito pouco saudável, feito de tecido espesso, algodoado.
— Como vê, são necessárias duas pessoas — explicou a Sra. Nolak, segurando o camelo com viva admiração. — Se o senhor tiver um amigo, ele poderá fazer parte da fantasia. Como vê, há uma espécie de calças para duas pessoas. Um par é para a pessoa que vai na frente; o outro, para a que vai atrás. A que vai na frente olha através desses olhos aqui, e a que vai atrás tem apenas de curvar-se sobre a que vai na frente e segui-la por toda a parte.
— Vista-a — ordenou Perry.
Obedientemente, a Sra. Nolak meteu a sua cara de gato malhado dentro da cabeça do camelo e mexeu-a de um lado para outro, ameaçadora.
Perry sentiu-se fascinado.
— Que barulho faz um camelo?
— Como? — indagou a Sra. Nolak, enquanto o seu rosto, um tanto afogueado, surgia de dentro do camelo. — Oh, que barulho? Ora essa! Lança uma espécie de zurro.
— Deixe-me vê-lo diante dum espelho.
Defronte de um amplo espelho, Perry experimentou a cabeça e virou-a de um lado para outro com sinais de aprovação. Ali, na semiobscuridade da loja, o efeito era, positivamente, satisfatório. A cara do camelo era um estudo de pessimismo, decorado com numerosas esfoladuras, e tinha-se de admitir que sua pele apresentava um estado de negligência geral peculiar aos camelos… Precisava, com efeito, ser limpo e passado a ferro… mas distinto certamente, era. Tinha aspecto imponente. Chamaria atenção em qualquer festa, senão por outros motivos, ao menos pela melancolia de sua expressão e pelo ar de fome em torno dos olhos sombrios.
— Como vê, são necessárias duas pessoas — repetiu a Sra. Nolak.
Perry, para experimentar, apanhou o corpo e as pernas e enrolou tudo em torno de si, as pernas traseiras, como uma cinta, ao redor da cintura. O efeito, de um modo geral, era mau. Era, mesmo irreverente… como uma daquelas pinturas medievais de um monge convertido em animal por arte de Satanás. Quando muito, o conjunto assemelhava-se a uma vaca corcunda apoiada em seu traseiros em meio de um monte de cobertores.
— Não se parece com coisa alguma — objetou, sombrio, Perry.
— É verdade — concordou a Sra. Nolak. — Como vê, são necessárias duas pessoas.
Num lampejo, ocorreu a Perry uma solução.
— A senhora tem algum compromisso esta noite?
— Oh, eu não poderia, de modo algum…
— Oh, vamos! — exclamou Perry, animadoramente. — Claro que pode! Vamos! Seja camarada e meta-se nessas pernas traseiras.
Com dificuldade, localizou as pernas e apresentou, de modo insinuante, suas aberturas abissais. Mas a Sra. Nolak, a quem aquilo parecia causar aversão, recuou:
— Oh, não…
— Oh, vamos! Pode ficar na parte da frente, se quiser. Ou, então, tiraremos a sorte com uma moeda.
— Oh, não…
— Olhe que vale a pena!
A Sra. Nolak cerrou firmemente os lábios.
— Vamos parar com isso! — exclamou, num tom que não revelava qualquer timidez. — Nenhum dos cavalheiros que vêm aqui jamais agiu dessa maneira. Meu marido…
— A senhora tem marido? — indagou Perry. — Onde está ele?
— Em casa.
— Qual o número do telefone?
Após alguns minutos de negociações, conseguiu o número do telefone pertencente aos penates dos Nolaks e entrou em comunicação com aquela voz sumida, fatigada, que já tinha ouvido aquele dia. Mas o Sr. Nolak, embora apanhado de surpresa, e um tanto confuso pela brilhante torrente de lógica de Perry, manteve-se irremovível em seu ponto de vista. Firmemente, mas com dignidade, recusou-se a ajudar o Sr. Parkhurst na qualidade de parte traseira de um camelo.
Tendo desligado, ou melhor, depois que o Sr. Nolak desligou o aparelho, Perry sentou-se num cavalete para refletir. Citou para si mesmo os nomes dos amigos a quem poderia telefonar — e sua mente se deteve logo que lhe ocorreu, brumosa e tristemente, o nome de Betty Medill. Convidá-la-ia. Seu caso de amor terminara, mas ela não poderia recusar-se àquele seu último pedido. Claro que não era pedir muito… Apenas que o ajudasse a cumprir, durante uma breve noite, suas obrigações sociais. E, se ela insistisse, poderia ficar sendo a parte dianteira do camelo e, ele, a parte de trás. Ficou satisfeito com aquela sua magnanimidade. Seu espírito se voltou mesmo para sonhos cor-de-rosa de uma terna reconciliação no interior do camelo… ali, longe de todo o mundo…
— Seria melhor que decidisse logo.
A voz aburguesada da Sra. Nolak irrompeu em suas suaves fantasias e despertou-o para a ação. Dirigiu-se ao telefone e ligou para a casa dos Medill. A senhorita Betty tinha saído; fora a um jantar.
Então, quando tudo parecia perdido, a traseira do camelo entrou, com ar curioso, pela loja adentro. Era um indivíduo que parecia resfriado e cuja pessoa revelava uma tendência geral de inclinar-se para baixo. O boné puxado sobre os olhos, o queixo caído profundamente sobre o peito, o sobretudo a pender sobre os sapatos, apresentava um aspecto de profunda decadência e — Exército da Salvação às avessas — parecia completamente arrasado. Disse que era o chofer do táxi que o cavalheiro tomara na porta do Clarendon Hotel. Recebera ordens para esperar fora, mas, após esperar algum tempo, desconfiara de que o cavalheiro saíra pelos fundos, com o propósito de lesá-lo… como certos cavalheiros às vezes faziam. Por isso, entrara.
Dito isso, sentou-se no cavalete de três pernas.
— Quer ir a uma festa? — indagou, com ar severo, Perry.
— Tenho de trabalhar — respondeu, lugubremente, o chofer. — Preciso conservar meu emprego.
— É uma festa muito boa.
— Meu emprego também é muito bom.
— Vamos! — insistiu Perry. — Seja um bom sujeito! Veja, é uma beleza! — adicionou, erguendo o camelo, que o chofer mirou com ar cínico.
— Huh.
Perry explorou febrilmente com as mãos as dobras do tecido.
— Veja! — exclamou com entusiasmo, segurando uma porção de dobras. — Esta é a sua parte. Você não precisa nem sequer falar. Tudo o que tem a fazer é caminhar… e sentar-se de vez em quando. Você é quem se sentará todas as vezes. Pense nisso. Eu ficarei de pé o tempo todo, e você pode sentar-se parte do tempo. A única ocasião em que poderei me sentar é quando estivermos deitados, e você poderá sentar-se quando… oh, a qualquer momento. Entende?
— O que é isso? — indagou, desconfiado, o indivíduo. — Uma mortalha?
— De modo algum! — exclamou, indignado, Perry. — É um camelo.
— Heim?
Perry mencionou, então, uma quantia em dinheiro, e a conversa deixou a região dos resmungos e assumiu um aspecto mais prático. Perry e o chofer experimentaram o camelo diante do espelho.
— Você não pode ver — explicou Perry, espiando ansioso, através dos buracos dos olhos — mas, sinceramente, meu velho, você está simplesmente magnífico.
Um resmungo, vindo da corcova do animal, foi a resposta a esse elogio um tanto dúbio.
— Sinceramente, você está estupendo! — repetiu, entusiasmado, Perry. — Mexa-se um pouco.
As pernas traseiras moveram-se para a frente, produzindo o efeito de um enorme camelo-gato preparando-se para dar um salto.
— Não. Mova-se para os lados.
As ancas do camelo quase se desconjuntaram: uma bailarina havaiana teria morrido de inveja.
— Ótimo, não acha? — indagou Perry, voltando-se para a Sra. Nolak.
— Uma beleza! — concordou a Sra. Nolak.
— Nós o levaremos.
O embrulho foi metido debaixo do braço de Perry e ambos deixaram a loja.
— Toque para a festa! — ordenou Perry, acomodando-se no assento de trás.
— Que festa?
— A festa à fantasia.
— Onde é?
Isso apresentou um novo problema. Perry procurou lembrar-se, mas os nomes de todos os que haviam dado festas naquele fim de ano dançaram confusamente diante de seus olhos. Poderia perguntar à Sra. Nolak, mas, ao olhar pela janela, viu que as luzes da loja estavam apagadas. A Sra. Nolak já havia desaparecido, uma pequena mancha escura a seguir pela rua coberta de neve.
— Siga para a parte residencial — instruiu-o Perry, cheio de confiança. — Quando vir uma festa, pare. Ou eu lhe direi quando lá chegarmos.
Mergulhou num devaneio brumoso, e seus pensamentos se voltaram de novo para Betty… Imaginou, vagamente, que havia tido um desentendimento porque ela se recusara ir à festa como parte de trás do camelo. Já ia quase caindo num um cochilo em meio ao frio quando foi despertado pelo chofer, que abriu a porta e o sacudiu pelo braço.
— Já chegamos… talvez.
Perry olhou para fora, sonolento. Um toldo listrado estendia-se desde a guia da calçada até uma casa de pedra cinzenta, onde saíam os sons lentos e tamborilados de uma orquestra de jazz. Reconheceu a residência de Howard Tate.
— Claro. — exclamou, enfático. — Aqui estamos! Esta noite, a festa dos Tate. Todo mundo vai.
— Olhe — disse o chofer, ansioso, após lançar outro olhar ao toldo — o senhor tem certeza de que essa gente não irá se lançar contra mim, por eu ter vindo?
Perry empertigou-se, com toda dignidade:
— Se alguém lhe disser alguma coisa, responda apenas que você faz parte da minha fantasia.
Vendo-se mentalmente como uma coisa, e não como uma criatura humana, o indivíduo pareceu tranquilizar-se.
— Está bem — disse, com relutância.
Perry desceu e, abrigado pelo toldo, pôs-se a desenrolar o camelo.
— Vamos — ordenou.
Vários minutos mais tarde, um camelo melancólico, de aspecto faminto, lançando nuvens de fumo pela boca e pela ponta de sua nobre corcova, podia ser visto atravessando o portal da residência de Howard Tate, passando pelo atônito mordomo sem sequer emitir um bufo e dirigindo-se diretamente à escada principal, que conduzia ao salão de festas. O animal caminhava de um modo peculiar, que variava entre um andar incerto, em que as quatro pernas se moviam muito juntas, e uma disparada — mas que pode ser mais bem descrito pela palavra “hesitante”. O camelo parecia vacilante e, ao caminhar, ora alongava, ora contraía o corpo, como uma gigantesca sanfona.
III
Os Howard Tates são, como toda a gente que vive em Toledo sabe, as pessoas mais importantes da cidade. A Sra. Howard era uma Todd de Chicago antes de tornar-se uma Tate de Toledo, e a família, em geral, finge essa simplicidade consciente que começou a ser a marca de identificação da aristocracia americana. Os Tates chegaram à fase em que falam de porcos e de propriedades agrícolas e nos fitam com ar glacial, se a não se mostra deleitado. Começam a preferir aos amigos, como seus convivas, as pessoas que deles dependem, gastam, de maneira tranquila, uma porção de dinheiro e, tendo perdido o senso de competição, tornando inteiramente insípidos.
O baile, essa noite, era em honra da pequena Millicent Tate e, embora todas as idades estivessem representadas, os pares que dançavam eram constituídos, quase todos, de alunos de ginásios e de colleges; os jovens casados encontravam-se todos no baile a fantasia dos Townsends, no Tallyho Club. A Sra. Tate, junto à porta do salão, seguia Millicent com o olhar, mostrando-se radiante cada vez que seus olhos se encontravam. A seu lado, achavam-se duas bajuladoras de meia idade, que lhe diziam quão maravilhosamente requintada era a pequena Millicent. Foi nesse instante que a Sra. Tate se viu firmemente agarrada pela saia, e que a menor de suas filhas, Emily, de onze anos, se lançou com um “Oh!” de espanto nos braços da mãe.
— Ora, Emily! O que é que há?
— Mamãe — disse Emily, os olhos arregalados, mas palradora — há alguma coisa lá na escada.
— Como?
— Há uma coisa lá na escada, mamãe. Acho que é um cachorro muito grande, mas não parece cachorro.
— Que é que você quer dizer, Emily?
As bajuladoras moviam a cabeça, com ar de simpatia.
— Mamãe, parece… parece um camelo.
A Sra. Tate riu.
— Você viu apenas uma simples sombra, querida. Nada mais.
— Não, não. Foi alguma coisa, mamãe… grande. Eu descia as escadas, para ver se alguém estava chegando, e ele estava subindo. Engraçado, mamãe, mas ele parecia coxo. Quando me viu, lançou uma espécie de rosnadela e escorregou no patamar. Eu, então, fugi.
O riso dissipou-se no rosto da Sra. Tate.
— Ela deve ter visto alguma coisa — comentou.
As bajuladoras concordaram que a criança devia ter visto alguma coisa… e, súbito as três mulheres se afastaram instintivamente da porta, ao ouvir ruído de passos abafados, no corredor.
E as três, atônitas, lançaram, ao mesmo tempo, exclamações de espanto, quando aquela forma, de um castanho escuro, que lhes pareceu ser de um enorme animal, dobrou pelo corredor e fitou-as com ar faminto.
— Oh! — exclamou a Sra. Tate.
— Oh! — exclamaram, em coro, as senhoras.
O camelo, subitamente, encurvou as costas, e as expressões de assombro se converteram em gritos.
— Oh… vejam!
— O que é isso?
As danças cessaram, mas os pares, que acorreram à porta, tiveram uma impressão bastante diferente do intruso; com efeito, os jovens desconfiaram imediatamente de que se tratava de uma brincadeira, de uma pessoa contratada para divertir os presentes. Os rapazinhos de calças compridas olharam aquilo com ar bastante desdenhoso, a andar de um lado para outro com as mãos enfiadas nos bolsos, achando que tal gracejo era um insulto às suas inteligências. Mas as garotas lançaram gritinhos de júbilo.
— É um camelo!
— E o camelo mais engraçado que já vi!
O camelo permaneceu um momento indeciso, a oscilar ligeiramente de um lado para outro, parecendo lançar ao salão um olhar demorado e curioso; depois, como se houvesse tomado súbita decisão, girou nos calcanhares e saiu, rápido, porta afora.
O Sr. Howard Tate, que, no andar térreo, acabara de sair da biblioteca, conversava com um jovem no vestíbulo. De repente, ouviu gritos no topo da escada e, quase imediatamente, uma sucessão de ruídos abafados, seguidos do precipitoso aparecimento, ao pé da escada, de um grande animal marrom, que parecia dirigir-se, com muita pressa, a algum lugar.
— Que diabo é isto! — exclamou, sobressaltado, o Sr. Tate.
O animal recompôs-se com certa dignidade e, afetando um ar de extrema displicência, como se acabasse de lembrar-se de um compromisso importante, dirigiu-se, com andar irregular, para a porta da rua. Na verdade, suas pernas dianteiras começaram, casualmente, a correr.
— Ora, vejam só! — disse, em tom severo, o Sr. Tate. — Aqui! Agarre-o, Butterfield! Agarre-o!
O jovem envolveu o quarto traseiro do camelo num par de braços dominadores e, percebendo que qualquer locomoção era impossível, a parte dianteira submeteu-se à captura e permaneceu parada, tomada de certa agitação. Nessa altura, um bando de jovens já descia as escadas, e o Sr. Tate, suspeitando de tudo — de que se tratasse desde um ladrão engenhoso até um louco que houvesse fugido — deu ordens decididas ao jovem:
— Segure-o! Traga-o para cá; logo veremos o que é.
O camelo deixou-se conduzir à biblioteca, e o Sr. Tate, após fechar a porta, apanhou um revólver numa gaveta e ordenou ao jovem que retirasse a cabeça do animal. Logo, porém, boquiaberto, repôs o revólver em seu lugar.
— Ora essa! Perry Parkhurst! — exclamou, surpreso.
— Enganei-me de festa, Sr. Tate — explicou, humildemente, Perry. — Espero que não o tenha assustado.
— Bem… o senhor nos deu um susto — respondeu o Sr. Tate, compreendendo a situação. —Você estava indo ao baile a fantasia dos Townsends…
— Era o que pretendia fazer.
— Permita-me que apresente Sr. Butterfield, Sr. Parkhurst. — E, voltando-se para Perry: — Butterfield está passando alguns dias conosco.
— Me confundi um pouco — murmurou Perry. — Lamento muitíssimo.
— Não há problema algum… Foi o engano mais natural do mundo. Eu também tenho uma festa à fantasia e vou para lá daqui a pouco. — Voltou-se para Butterfield: — é melhor você mudar de ideia e ir conosco.
O jovem mostrou-se hesitante. Ele estava indo dormir.
— Aceita um drinque? — indagou o Sr. Tate.
— Obrigado, aceito.
— Oh — prosseguiu Tate rapidamente — esqueci completamente o seu… amigo aqui — Indicou a parte traseira do camelo. — Não quis ser descortês. É alguém que eu conheça? Faça-o sair.
— Não é meu amigo — apressou-se a explicar Perry. — Eu apenas o aluguei.
— E ele toma alguma coisa?
— Toma? — indagou Perry, retorcendo-se tortuosamente.
Houve um débil ruído de assentimento.
— Claro que toma! — disse, animado, o Sr. Tate. — Um camelo verdadeiramente eficiente deve ser capaz de beber o suficiente para três dias.
— Mas — interveio, ansiosamente, Perry —, ele não está trajado de maneira apropriada, para que possa sair. O senhor me dá a garrafa e eu a passo lá para trás, de modo que ele possa beber no interior do camelo.
Por debaixo do pano, ouviu-se uma espécie de entusiástico som de estalo produzido por essa sugestão. Quando o mordomo apareceu, trazendo garrafas, copos e sifão, uma das garrafas foi passada para trás; depois disso, pôde-se ouvir os longos goles, a intervalos regulares, dados pelo silencioso conviva.
Assim se passou uma benigna hora. Às dez horas, o Sr. Tate decidiu que era melhor que se pusessem a caminho. E vestiu sua fantasia de palhaço; Perry recolocou a cabeça do camelo e, lado a lado, atravessaram a pé o único quarteirão que separava a residência dos Tates do Tallyho Club.
O baile à fantasia, num cenário representando um circo, estava em plena animação. Um grande pavilhão fora armado no interior do salão de baile e, em torno, junto às paredes, haviam sido construídas fileiras de barracas representando as várias atrações externas de um espetáculo circense, mas estas se achavam então vagas e, no picadeiro, uma multidão de gente jovem, em vestes coloridas, ria e gritava: palhaços, mulheres barbadas, acrobatas, amazonas, diretores de circo, homens tatuados e condutores de bigas. Os Townsends estavam resolvidos a garantir o êxito de sua festa, de modo que uma grande quantidade de bebidas alcoólicas foi sub-repticiamente trazida de sua casa, e agora fluía livremente. Uma grande fita verde estendia-se, ao longo das paredes, por todo o salão, com flechas e cartazes indicando aos neófitos que deviam “seguir a linha verde!” A linha verde conduzia ao bar, onde havia ponche puro, ponche “batizado” e simples garrafas de um verde escuro.
Na parede, sobre o bar, havia outra seta, vermelha e muito sinuosa, e, sob ela, um dístico: “Agora siga esta!”
Mas, mesmo em meio ao luxo das fantasias e à animação reinante, a entrada do camelo despertou certo alvoroço, e Perry viu-se imediatamente cercado por uma multidão curiosa e hílare, que tentava descobrir a identidade daquele animal parado junto à ampla porta, a observar, os olhos famintos, melancólicos, os pares que dançavam.
Foi então que Perry viu Betty de pé junto a uma barraca, falando com um sujeito fantasiado de policial. Trajava uma fantasia egípcia de encantadora de serpentes: seus cabelos castanhos, trançados, passavam através de anéis de metal, e tinha, no alto da cabeça, uma tiara oriental. O rosto, pintado, apresentava um brilho vivo e oliváceo e, em seus braços e na meia« lua que lhe adornava as costas, viam-se serpentes enroladas, de olhos verdes e venenosos. Calçava sandálias e sua saia era aberta até aos joelhos, de modo que, quando caminhava, a gente vislumbrava outras serpentes esguias pintadas pouco acima de seus tornozelos. Em torno do pescoço, tinha uma cobra cintilante. Fantasia deveras encantadora, que fazia com que algumas das mulheres mais velhas e nervosas recuassem à sua passagem, e que as mais modestas lançassem exclamações de “Não deveria ser permitido!” e “Absolutamente lamentável!”
Mas Perry, espiando através dos olhos incertos do camelo, via-lhe apenas o rosto, radiante, animado, a brilhar de excitação, bem como os braços e os ombros, cujos gestos móveis, expressivos, faziam como que ela sempre se destacasse em qualquer grupo. Sentiu-se fascinado, e essa fascinação teve o efeito de dissipar um tanto a sua embriaguez. Com crescente nitidez, recordou os acontecimentos do dia; um sentimento de ira apoderou-se dele e, com a vaga intenção de afastá-la daquela multidão, procurou acercar-se de Betty… ou melhor, alongou ligeiramente o corpo do camelo, pois que se esquecera de dar as ordens preparatórias necessárias à locomoção do animal.
Nessa altura, porém, a caprichosa Kismet, que, durante um dia todo, se divertira amarga e sardonicamente com ele, resolveu recompensá-lo por completo pelo divertimento que ele lhe proporcionara. Kismet pousou sobre o camelo os seus olhos castanhos de encantadora de serpentes. Kismet levou-a a debruçar-se sobre o homem que estava a seu lado e dizer-lhe:
— Quem é aquele? O camelo?
— Não tenho a mínima ideia.
Mas um homenzinho chamado Warburton, que sabia de tudo, achou necessário arriscar uma opinião:
— Veio em companhia do Sr. Tate. Acho que talvez seja Warren Butterfield, um arquiteto de Nova York, que se acha em visita aos Tates.
Alguma coisa se agitou no íntimo de Betty Medill — aquele velho interesse da garota provinciana pelo visitante.
— Oh — fez ela, após ligeira pausa, com ar casual.
No final da dança seguinte, Betty e seu par se detiveram a poucos passos do camelo. Com a audaciosa sem-cerimônia que constituía a nota principal da noite, ela estendeu a mão e acariciou de leve o focinho do camelo.
— Olá, camelo velho!
O camelo mexeu-se, inquieto.
— Tem medo de mim? — indagou Betty, erguendo as sobrancelhas em sinal de censura. — Não tenha medo. Como vê, sou uma encantadora de serpentes, mas também sei lidar muito bem com camelos.
O camelo fez uma profunda reverência, e alguém não perdeu a ocasião de aludir à bela e a fera.
A Sra. Townsend acercou-se do grupo.
— Muito bem, Sr. Butterfield — disse, esperançosa. — Eu não o teria reconhecido.
Perry fez outra curvatura e sorriu jubiloso atrás da máscara.
— E quem está aí com o senhor? — indagou ela.
— Oh — respondeu Perry, a voz abafada pelo tecido espesso e inteiramente irreconhecível. — Não é uma pessoa, Sra. Townsend. É apenas parte de minha fantasia.
A Sra. Townsend riu e afastou-se. Perry voltou-se de novo para Betty.
“Então” pensou “é assim que ela se importa comigo! No mesmo dia de nosso término definitivo, começa a flertar com outro homem… um perfeito desconhecido”.
Num ímpeto, tocou-lhe de leve o ombro e fez-lhe um sinal sugestivo com a cabeça em direção da porta, tornando claro o seu desejo de que ela deixasse o seu par e o acompanhasse.
— Adeusinho, Rus — gritou ela ao companheiro. — Este velho camelo me conquistou. Aonde vamos, Príncipe das Feras?
O nobre animal nada respondeu, limitando-se apenas a caminhar gravemente em direção de um lugar isolado, junto de uma escada lateral.
Uma vez lá, Betty sentou-se, e o camelo, após alguns segundos de confusão, que incluíam ordens resmungadas e uma viva discussão em seu interior, colocou-se a seu lado, as pernas de trás estendidas, de maneira pouco confortável, sobre dois degraus.
— Bem, meu velhinho — indagou Betty alegremente — o que acha desta alegre festa?
Meu velhinho indicou que a festa parecia excelente movendo a cabeça como que em êxtase e executando um coice de felicidade.
— Esta é a primeira vez em minha vida que tenho um tête-à-tête com um homem em presença de seu criado de quarto — ela apontou para o quarto traseiro — ou que quer que seja isso.
— Oh — murmurou Perry — ele é surdo e cego.
— Parece-me que você deve sentir-se um tanto tolhido… Mesmo que quisesse, não poderia mover-se à vontade.
O camelo, com ar lúgubre, moveu a cabeça em sinal de assentimento.
— Gostaria que dissesse alguma coisa — prosseguiu Betty, com doçura. — Diga que lhe agrado, camelo. Diga que me acha bonita. Diga que você gostaria de pertencer a uma bela encantadora de serpentes.
O camelo gostaria.
— Gostaria de dançar comigo, camelo?
O camelo tentaria.
Betty dedicou meia hora ao camelo. Dedicava pelo menos meia hora a todos os visitantes. Em geral, era o suficiente. Quando ela se aproximava de algum homem desconhecido, as debutantes habituais costumavam debandar no mesmo instante e desaparecer, como uma coluna cerrada desdobrando-se diante de uma metralhadora. E, assim, foi concedido a Perry Parkhurst o privilégio único de ver a sua amada tal como os outros a viam. Ela flertava escandalosamente com ele.
IV
Esse paraíso de frágeis alicerces foi abalado pela entrada ruidosa no salão de uma multidão de pessoas. Começava a dança do “cotillon”. Betty e o camelo juntaram-se aos demais, a mão morena de Betty pousada delicadamente sobre o ombro de seu companheiro, a simbolizar, desafiadoramente, a sua completa adoção do animal.
Ao entrarem, os grupos já estavam se sentando às mesas colocadas em torno das paredes, e a Sra. Townsend, resplandecente como uma super amazona, as batatas da perna grandes demais, encontrava-se de pé no centro em companhia do diretor de circo encarregado dos arranjos. A um sinal dirigido à banda, todos se levantaram e puseram-se a dançar.
— Não é simplesmente maravilhoso? — suspirou Betty. — Acha que conseguirá dançar?
Perry, entusiasticamente, fez um sinal afirmativo com a cabeça. Sentia-se, de repente, exuberante. Afinal de contas, estava ali incógnito, a conversar com a sua amada… Podia bem lançar ao mundo um olhar desdenhoso.
E, assim, Perry dançou o cotillon. Digo dançar, mas isto é estender a palavra demasiado além dos sonhos mais malucos dos amantes do jazz. Deixou que sua companheira pusesse as mãos em seus ombros inermes e o puxasse de um lado para outro pelo salão, enquanto ele pousava docilmente sua enorme cabeça sobre o seu ombro, fazendo movimentos inúteis e simulados com os pés. Suas pernas traseiras dançavam de uma maneira inteiramente própria, e que consistia, principalmente, em levantar ora um pé, ora outro. Não tendo jamais certeza de qual música estava sendo tocada, as pernas de trás agiam com cautela, entregando-se a uma série de passos sempre que a música começava a tocar. Assim, acontecia com frequência que, enquanto a parte dianteira do camelo se achava em descanso, a parte posterior se mantinha em constante e enérgico movimento, capaz de fazer transpirar, movido por simpatia, qualquer observador de coração sensível.
Foi, várias vezes, o escolhido. Dançou primeiro com uma senhora alta coberta de palha, que lhe anunciou, jovialmente, que era um fardo de feno, rogando-lhe, humildemente, que ele não a comesse.
— Eu bem que gostaria; a senhora é muito cheirosa — disse, galantemente, o camelo.
Cada vez que o mestre de picadeiro gritava “Agora, os cavalheiros!”, ele se arrastava ferozmente à procura de Betty, com a salsicha de papelão, ou a fotografia da mulher barbada, ou qualquer que fosse a que o havia escolhido. Às vezes, alcançava-a primeiro, mas, em geral, suas investidas eram malsucedidas e resultavam em vivas discussões interiores.
— Pelo amor de Deus! — rosnava Perry entre dentes, furioso. — Um pouco mais de entusiasmo! Eu poderia tê-la alcançado a tempo, se você mexesse os pés!
— Bem, dê um mínimo aviso.
— Eu dei, que droga!
— Não consigo ver nada aqui de dentro.
— Tudo o que você tem a fazer é seguir-me. Caminhar com você é o mesmo que arrastar um saco de areia.
— Talvez o senhor prefira tentar ficar aqui atrás.
— Ora, cale-se! Se essa gente o descobrisse aqui dentro, você receberia a maior pancadaria de toda a sua vida. Tirariam a sua carteira de chofer!
Perry surpreendeu-se da facilidade com que fez essa monstruosa ameaça, mas a mesma pareceu exercer uma influência soporífica sobre o seu companheiro, pois que este lançou uma exclamação de terror e mergulhou em envergonhado silêncio.
O mestre de picadeiro subiu sobre um piano e fez um gesto com a mão, pedindo silêncio.
— Os prêmios! bradou. Reúnam-se todos!
— Sim! Os prêmios!
Acanhadamente, a multidão se aproximou. A garota bastante bonita que tivera a coragem de aparecer como barbada tremia de emoção, pensando em receber o prêmio que seria concedido à fantasia mais horrorosa da noite. O homem que passara a tarde fazendo com que pintassem tatuagens em seu corpo, abriu caminho para o lado da multidão, corando violentamente quando alguém lhe disse que o prêmio lhe seria, com toda a certeza, concedido.
— Senhoras e senhores, artistas do circo — anunciou, jovialmente, o diretor de picadeiro. — Estou certo de que todos os presentes estão se divertindo muito. Agora procederemos à distribuição dos prêmios, que serão concedidos aos que de fato os mereceram. A Sra. Townsend pediu-me que me encarregasse disso. Pois bem, senhores participantes! O primeiro prêmio cabe àquela senhora que, esta noite, exibiu a fantasia mais surpreendente, mais adequada… — Nessa altura, a mulher barbada suspirou resignadamente — … e mais original. — Aqui, o fardo de feno aguçou os ouvidos. — Bem, estou seguro de que a decisão a que se chegou contará com a aprovação unânime dos presentes. O primeiro prêmio cabe à senhorita Betty Medill, a sedutora egípcia encantadora de serpentes.
Houve uma explosão de aplausos, principalmente masculinos, e a senhorita Betty Medill, enrubescendo de modo encantador sob a pintura olivácea, foi levada até junto do mestre de picadeiro, a fim de receber o prêmio. Com um sorriso terno, este último lhe entregou um grande buquê de orquídeas.
— E agora — prosseguiu o homem, olhando em torno — o outro prêmio é concedido àquele que apresentou a fantasia mais divertida e original. Esse prêmio cabe, indiscutivelmente, a um cavalheiro que se acha em visita à nossa cidade, mas cuja permanência aqui, assim o esperamos, possa ser longa e alegre… cabe, em suma, ao nobre camelo que nos divertiu a todos, durante toda a noite, com seu ar faminto e sua brilhante maneira de dançar,
Deteve-se e ouviram-se gritos e aplausos entusiásticos, pois a escolha era do agrado geral. O prêmio, uma grande caixa de charutos, foi posto de lado, já que o camelo se achava anatomicamente impossibilitado de aceitá-lo em pessoa.
— E agora — continuou o mestre de picadeiro — terminaremos o cotillon com o Casamento da Folia. Para a grande marcha nupcial, formem à frente a bela encantadora de serpentes e o nobre camelo!
Betty avançou alegremente e passou um braço oliváceo em torno do pescoço do camelo. Atrás deles, formou-se uma coluna dupla constituída de rapazinhos, mocinhas, caipiras, mulheres gordas, homens magros, engolidores de espadas, selvagens de Bornéu e monstros sem braços, muitos deles já bem animados pelo álcool, todos excitados, felizes e entontecidos pelos jatos de luz e pelas cores que os cercavam, bem como pelos rostos familiares, curiosamente estranhos sob perucas bizarras e pinturas bárbaras. Os acordes voluptuosos da marcha nupcial, tocada de maneira blasfemamente sincopada, saíram, numa mistura delirante, dos trombones e saxofones — e a marcha começou.
— Não está contente, camelo? — indagou, docemente, Betty, quando começaram a andar. — Não está contente por casar comigo e passar a pertencer para sempre à bela encantadora de serpentes?
O camelo escoiceou com as pernas da frente, manifestando enorme alegria.
— Ministro! Ministro! Onde está o ministro? — ergueram-se vozes em meio da folia. — Quem irá ser o clérigo?
A cabeça de Jumbo, um negro obeso, garçom, havia muitos anos, do Tallyho Club, surgiu, de repente, através da porta entreaberta da copa.
— Oh, Jumbo!
— Tragam o velho Jumbo! Eis aí o nosso homem!
— Venha, Jumbo! Que tal você fazer um casamento?
— Ótimo!
Jumbo foi agarrado por quatro comediantes, despido de seu avental e carregado para uma plataforma existente no salão. Tiraram-lhe o colarinho e colocaram-no voltado para trás, a fim de produzir um efeito eclesiástico. Os presentes abriram alas, deixando o centro para os noivos.
— Oh, Senhor! — trovejou Jumbo. — Tenho aqui comigo uma Bíblia e tudo o mais.
Tirou do bolso interno do paletó uma velha Bíblia.
— Oh, Jumbo tem uma Bíblia!
— E uma navalha também, aposto!
Lado a lado, a encantadora de serpentes e o camelo atravessaram o salão, em meio de aplausos, e detiveram-se diante de Jumbo.
— Onde está sua licença de casamento, camelo?
Um homem, perto de Perry, o cutucou com o braço.
— Dê-lhe um pedaço de papel. Qualquer coisa serve.
Perry remexeu confusamente o fundo do bolso, encontrou um papel dobrado e enfiou-o através da boca do camelo. Segurando-o de cabeça para baixo, Jumbo fingiu examiná-lo com atenção.
— Esta é uma licença especial, camelo — disse ele. — Tem aí pronta a sua aliança, camelo?
Perry voltou-se, no interior do camelo, para a sua parte de trás:
— Arranje-me um anel, pelo amor de Deus!
— Não tenho — protestou uma voz fatigada.
— Tem! Eu o vi.
— Não vou tirá-lo de meu dedo!
— Se não tirar, eu o mato.
Houve um ligeiro ofegar e Perry sentiu na mão um grande anel de metal com uma pedra imitando diamante.
De fora, cutucaram-no de novo.
— Vamos, fale!
— Eu tenho! — gritou Perry, rápido.
Ouviu as respostas de Betty, proferidas em tom displicente, mas mesmo no meio daquela farsa o som de sua voz o emocionou.
Depois, passou o anel através de um rasgão existente na pele do camelo e enfiou-o no dedo de Betty, repetindo, num murmúrio, as antigas e históricas palavras que Jumbo pronunciava. Não queria que ninguém jamais soubesse daquilo. Sua ideia era sair da festa sorrateiramente, sem que precisasse revelar sua identidade, pois que, até então, o Sr. Tate havia guardado bem o seu segredo. Ele, Perry, era um rapaz digno… e aquela brincadeira poderia prejudicar a sua nascente carreira de advogado.
— Abrace a noiva!
— Tire a máscara, camelo, e beije a noiva.
Instintivamente, seu coração começou a bater forte, quando Betty se voltou para ele e começou a passar a mão pelo seu focinho de papelão. Sentiu que perdia o domínio sobre si mesmo; teve vontade de envolvê-la em seus braços, revelar sua identidade e beijar aqueles lábios que lhe sorriam a um passo de distância… quando subitamente, os risos e os aplausos em torno deles se extinguiram, e um curioso silêncio caiu sobre o salão. Perry e Betty olharam ao redor, surpresos. Jumbo lançara um imenso “Atenção!”, numa voz tão cheia de surpresa que todos os olhares se voltaram para ele.
— Atenção! — repetiu.
Tinha virado a licença de casamento do camelo, que estava de cabeça para baixo e, tirando do bolso os óculos, examinava-a aflitivamente.
— Ora essa! — exclamou, e, no silêncio que invadira o salão, suas palavras foram ouvidas por todos os presentes. — Isto aqui é, de fato, uma licença de casamento!
— Como?
— Hem?
— Repita isso, Jumbo!
— Leia-a em voz alta!
Jumbo pediu, com um gesto, que fizessem silêncio, enquanto o sangue de Perry se convertia em fogo em suas veias, ao perceber o erro que cometera.
— Sim, senhores! — repetiu Jumbo. — Isto aqui é uma licença de casamento de verdade, e as partes interessadas, como se lê aqui, são a Senhorita Betty Medill e o Sr. Perry Parkhurst.
Houve uma exclamação geral de espanto e, quando o rumor abafado se extinguiu, todos os olhares se fixaram no camelo. Betty recuou rápida, os olhos castanhos dardejando de ódio.
— Você, camelo, é o Sr. Parkhurst?
Perry não respondeu. A multidão aproximou-se mais e fitou-o. Ele permaneceu hirto em seu embaraço, a cara de papelão, ainda faminta e sardônica, a olhar o nefasto Jumbo.
— E melhor que o senhor fale! — disse, lentamente Jumbo. — Este é um assunto muito sério. Acontece que eu, além de empregado deste clube, sou ministro da Primeira Igreja Batista. E parece-me que os senhores estão casados de verdade.
V
A cena que se seguiu ficará sempre nos anais do Tallyho Club. Vigorosas matronas desmaiavam, americanos cem por cento lançavam imprecações, debutantes de olhos esbugalhados resmungavam nos grupos que instantaneamente se formavam e se dissolviam, e um grande murmúrio de vozes, virulentas mas estranhamente abafadas, zumbia por todo o caótico salão. Jovens exaltados juravam que matariam Perry ou Jumbo, ou ambos, ou um deles, enquanto o ministro batista era cercado por um bando tempestuoso de advogados amadores que lhe faziam perguntas, proferiam ameaças, indagavam acerca de precedentes, exigiam que o casamento fosse anulado, procurando, principalmente, arrancar dele qualquer insinuação de que o ocorrido havia sido premeditado.
Num canto, a Sra. Townsend chorava baixinho nos ombros do Sr. Howard Tate, que procurava em vão consolá-la; ambos diziam “a culpa é minha” em voz alta e emocionada. Fora, numa calçada coberta de neve, o Sr. Cyrius Medill, o Homem do Alumínio, andava lentamente, de um lado para outro, entre dois bronzeados condutores de bigas, proferindo palavras irreproduzíveis e a rogar a seus acompanhantes que lhe permitissem agarrar a Jumbo. Estava fantasiado de selvagem de Bornéu, e um diretor de cena meticuloso reconheceria que seria impossível melhorar seu figurino.
Enquanto isso, os dois protagonistas principais ocupavam o centro do palco. Betty Medill — ou seria Betty Parkhurst? — tomada de um acesso de raiva, achava-se cercada das garotas mais sem graça da festa — as mais bonitas estavam muito ocupadas em falar dela para que pudessem prestar-lhe muita atenção — enquanto, do outro lado do salão, se achava o camelo, ainda intacto, salvo quanto à cabeça, que balançava pateticamente sob seu peito. Perry indicava enfaticamente sua inocência, em meio a um grupo de cavalheiros irados e perplexos. De quando em quando, justamente nos momentos em que parecia haver provado sua inocência, alguém se referia ao certificado de casamento, e a inquisição recomeçava.
Uma jovem chamada Marion Cloud, que, quanto à beleza, era considerada a segunda garota mais linda de Toledo, mudou, com uma observação que fez a Betty, a essência da questão:
— Bem — disse, maldosamente — tudo isso dará em nada, querida. Qualquer tribunal anulará, sem dúvida, esse casamento.
As lágrimas furiosas de Betty secaram miraculosamente, seus lábios se contraíram, enquanto fitava Marion com ar gélido. Depois, levantou-se e, afastando para a esquerda e para a direita aqueles que a consolavam, atravessou o salão em direção de Perry, que a fitava tomado de terror.
— Quer ter a decência de conceder-me cinco minutos de conversa… ou isso não estava incluído em seus planos?
Ele assentiu com um sinal de cabeça, incapaz de proferir qualquer palavra.
Indicando friamente que ele devia segui-la, caminhou de cabeça erguida para o vestíbulo e dirigiu-se a um dos discretos compartimentos da parede de papelão.
Perry procurou segui-la, mas foi subitamente detido por suas pernas traseiras, que haviam deixado de funcionar.
— Você fica aqui! — ordenou, áspero.
— Não consigo — gemeu uma voz, vinda da corcova — a não ser que o senhor saia primeiro e me deixe sair daqui.
Perry hesitou, mas, não conseguindo mais suportar os olhares da multidão curiosa, sussurrou uma ordem e o camelo deixou cautelosamente o salão movido pelas suas quatro pernas. Betty esperava-o.
— Bem — começou, furiosa —, veja o que você fez! Você e aquela licença maluca! Eu lhe disse que não a tirasse!
— Minha cara jovem, eu…
— Não me chame de “minha cara jovem”! Deixe isso para sua esposa verdadeira, se é que você algum dia conseguirá uma esposa, depois da lamentável ação que cometeu! E não procure fingir que isso tudo não foi arranjado. Eu sei que você deu dinheiro àquele garçom! Você sabe que deu! Então você quer dizer que não queria casar comigo?
— Não… é claro que…
— Sim, seria melhor que você confessasse tudo! Você o tentou e, agora, o que é que pretende fazer? Sabe que meu pai está quase maluco? Será bem-feito se ele tentar matá-lo. Ele puxará o revólver e meterá uma bala em você. Mesmo que este casamento… que esta coisa seja anulada, eu ficarei para sempre marcada!
Perry não pôde resistir e citou, baixinho: “Oh, camelo, você não gostaria de pertencer para sempre a esta bela encantadora de serpentes…”
— Cale-se! — gritou Betty.
Houve uma pausa.
— Betty — disse, finalmente, Perry. — Na verdade, só uma coisa poderia tirar-nos desta encrenca. E essa coisa é que você casasse comigo.
— Casar com você?
— Sim. É a única coisa, realmente…
— Cale-se! Não casaria com você nem mesmo que… que…
— Eu sei: nem mesmo que eu fosse o último homem sobre a terra. Mas se você se preocupa, de fato, com sua reputação…
— Reputação! — exclamou ela. — E é você que fala, agora, em minha reputação! Por que não pensou em minha reputação antes de combinar com aquele horroroso Jumbo para que…
Perry abanou a cabeça, desesperançado:
— Muito bem. Farei o que você quiser. Deus sabe que renuncio a qualquer reivindicação!
— Mas — disse uma voz — eu não renuncio.
Perry e Betty tiveram um sobressalto — e ela levou a mão ao peito.
— Pelo amor de Deus, o que significa isso?
— Sou eu — responderam as costas do camelo.
Num minuto, Perry arrancou a pele do camelo, e uma coisa lassa, frouxa, as roupas dependuradas molemente do corpo, as mãos agarradas com força a uma garrafa quase vazia, surgiu, desafiadora, diante deles.
— Oh! — exclamou Betty. — Você trouxe essa coisa aí dentro para assustar-me! E me disse que essa criatura horrorosa era surda!
A parte traseira do camelo sentou-se numa cadeira com um suspiro de satisfação.
— Não fale assim de mim, senhora! Eu não sou apenas uma criatura. Sou seu marido.
— Marido!
O grito de assombro partiu, simultaneamente, de Perry e Betty.
— Ora essa! Claro! Sou tão seu marido como esse sujeito aí. O preto não casou a senhora apenas com a parte da frente do camelo. Casou com o camelo inteiro. Se a senhora até traz no dedo o meu anel!
Com algum esforço, Betty arrancou o anel do dedo e jogou-o furiosamente ao chão.
— Que significa tudo isso? — indagou, desorientado, Perry.
— Significa que é melhor que o senhor se entenda logo comigo… e que se entenda bem. Se não fizer isso, vou defender, exatamente como o senhor, o direito de estar casado com ela!
— Isso é bigamia — disse Perry, voltando-se, com ar grave, para Betty.
Surgiu então, para Perry, o momento supremo da noite, a última oportunidade de arriscar a sua própria sorte. Levantou-se e fitou primeiro Betty, que se achava sentada, fraca, numa cadeira, aterrada diante daquela nova complicação, e depois, o indivíduo que, também sentado, oscilava de um lado para outro, incerto, ameaçador.
— Muito bem — disse Perry, lentamente, ao indivíduo. — Pode ficar com ela. Betty, vou provar-lhe que, quanto ao que me diz respeito, nosso casamento foi inteiramente acidental. Vou renunciar por completo ao direito de tê-la como minha esposa, e cedê-la ao… ao homem cujo anel você usa… seu legítimo marido.
Houve uma pausa, e quatro olhos aterrorizados, o fitaram.
— Adeus, Betty — disse ele, com voz entrecortada. — Não se esqueça de mim em sua recém-encontrada felicidade. Vou partir para o Oeste logo cedo, no primeiro trem. Pense em mim com carinho, Betty.
Lançou-lhes um último olhar e voltando-se para a porta, a cabeça caída sobre o peito, pousou a mão na maçaneta.
— Adeus — repetiu.
E girou o trinco.
Mas, ao ouvir-se o ruído da fechadura, as cobras, e a seda e os cabelos castanhos se precipitaram violentamente sobre ele.
— Oh, Perry, não me deixe! Perry, Perry, leve-me com você!
Suas lágrimas caíam-lhe, úmidas, sobre o pescoço, Calmamente, ele a envolveu em seus braços.
— Eu não me importo — exclamou ela. — Eu o amo, e se você conseguir despertar um ministro a esta hora e fazer com que ele nos case de novo, eu irei com você para o Oeste.
Por sobre os ombros dela, a parte dianteira do camelo olhou para a parte traseira do camelo — e ambas trocaram uma piscadela particularmente sutil, esotérica, que só os verdadeiros camelos podem entender.